terça-feira, 14 de outubro de 2008

A "segunda navegação" e a fundação da metafísica



Resumos das mais importantes lições de Giovanni Reale sobre a filosofia de Platão.


Platão chamava de "primeira navegação" as pesquisas da filosofia naturalista – aquela que se detém exclusivamente em causas físicas ou mecânicas –, enquanto a "segunda navegação" consiste na busca das "verdadeiras causas" metaempíricas. Platão introduziu as noções de "material", "imaterial", "sensível", "supra-sensível", "empírico", "metaempírico", "físico", "suprafísico", etc. Isso quer dizer que Platão entendia que as causas das coisas físicas estão além do físico, isto é, no plano metafísico.

Platão denominou essas causas de natureza não-física de Idéias (eidos), que significa "formas". As Idéias platônicas são as essências das coisas, não se submetendo aos caprichos do sujeito mas, pelo contrário, se impõem ao sujeito de modo absoluto. O conjunto dessas Idéias é o Hiperurânio, o objeto próprio da verdadeira ciência. Portanto, a Idea não é o pensamento, mas o objeto do pensamento, ao qual o pensamento se dirige. Antes de Platão, os termos idea e eidos eram empregados sobretudo para indicar a forma visível das coisas, ou seja, a forma exterior, ou a figura física que se capta com os olhos, portanto a visão sensível. A partir de Platão, ao contrário, são empregados para indicar a forma interior das coisas, sua essência.

As páginas centrais do Fédon constituem a primeira demonstração racional da existência de um ser supra-sensível e transcendente, que dá sentido ao ente sensível em todas as suas formas, são a verdadeira magna charta da metafísica ocidental.

Os problemas metafísicos com os quais o homem se encontra desde sempre se quiser responder à questão do sentido de si e das coisas, são os da geração e corrupção e do ser das coisas, centrados especificamente na causa última ou princípio que lhe serve de fundamento. Pois bem, Platão, sob a máscara dramatúrgica de Sócrate que representa o filósofo por excelência, diz ter partido desde jovem justamente desses problemas fundamentais, procurando resolvê-los percorrendo os caminhos traçados pelos primeiros filósofos na investigação da natureza. Mas, com base no método peculiar desse tipo de pesquisa, as respostas aos problemas revelam um caráter físico e, portanto, são limitadas à dimensão do ser físico.

A vida, por exemplo, explicada com esses critérios, ter-se-ia gerado pelos processos ligados ao calor e ao frio. O próprio pensamento humano seria entendido em função de elementos puramente materiais: Empédocles, por exemplo, o explicava em função do sangue; Anaximandro e Diógenes de Apolônia, em função do ar; Heráclito, em função do fogo; Alcmeon, em função do cérebro como órgão físico. Tinham natureza semelhante, enfim, as explicações que os filósofos naturalistas forneciam dos problemas ligados à geração e à corrupção.

Assim, observava Platão, as respostas de tais filósofos não comportam de modo algum um esclarecimento dos problemas, mas produzem complicações de vários tipos e, em última análise, confusão.

Vejamos dois exemplos sutis e delicados fornecidos por Platão, nos quais as explicações de caráter físico revelam grande inconsistência:

a) Diz-se que um homem (ou um cavalo) posto ao lado de um pequeno revela-se "maior" pela cabeça, que, contudo, é por si pequena. Ou então se diz que dez, comparado ao oito, é "maior", porque tem a mais o dois, que, porém, é por si "menor". Ou, ainda, diz-se que o tamanho de dois côvados é maior que o de um côvado, uma vez que o supera de uma metade, que, porém, por si só, é "menor". Como é evidente, com o método naturalista a causa do ser maior não apenas não é explicada, mas é obscurecida.

b) Baseando-se no método seguido pelos naturalistas, não se consegue sequer explicar o "dois" e o "um". Segundo os naturalistas, somando uma unidade a outra unidade, ou seja, aproximando-as e acrescentando uma à outra, se produziria o "dois". Mas eles também afirmam o contrário, ou seja, que igualmente se obteria o "dois" dividindo a "unidade". Todavia, os procedimentos do somar (ou seja, do aproximar e do acrescentar) e do dividir (ou seja, do afastar e do separar) são opostos entre si; mas justamente como opostos, não se compreende como podem ser "causa" em sentido verdadeiro do mesmo efeito. Menos ainda, com esses procedimentos físico-mecânicos, é possível explicar como se gera o um e portanto compreender como uma coisa se torne e seja "una".

Platão conclui:

E nem sequer estou convencido de saber [seguindo o método dos naturalistas] como o um se gera, e, em suma, como qualquer outra coisa tem origem, desaparece ou existe, segundo esse tipo de investigação. E procuro outro tipo de investigação, porque esta, de qualquer modo, não me serve.

Ora, a característica de teorias como as do evolucionismo, atomismo e mecanicismo, é justamente esta: arrasar a inteligibilidade do mundo, considerando, por exemplo, que um ser dotado de propriedades sensitivas "é apenas" ou "veio" de um mero arranjo de átomos, que, porém, não possuem propriedades de sentir. Percebe-se então que Platão busca as causas formais, a essência das coisas que não pode ser explicada pela matéria. O "mais" não pode vir do "menos".

Isso fica claro quando constatamos a insatisfação de Platão diante da doutrina da Inteligência de Anáxagoras. Esta doutrina ofereceu grande esperança a Platão, mas não foi o suficiente. Segundo ela, a Inteligência (que Platão identifica com o Deus-Demiurgo) é causa de tudo - causa eficiente -, ordenando as coisas e dispondo-as da melhor forma possível. Ora, segundo Platão, para pôr de modo correto a Inteligência como causa da geração, da morte e da existência das coisas, deve-se pôr, ao mesmo tempo, também a Idéia do Bem como causa - a verdadeira causa -, uma vez que a Inteligência só pode agir em conexão com o Bem. Percebe-se claramente por que a tradição filosófica posterior identificou as Idéias com os "arquétipos" ou "possibilidades" concebidos na "mente de Deus", mas sobre isso veremos depois.

Ora, Platão não nega que os elementos físicos (água, ar, fogo e terra) sejam necessários para a produção dos fenômenos. No entanto, eles não são suficientes, estão bem longe de ser a causa verdadeira (são apenas uma concausa material). Não adianta pôr a Inteligência ordenadora como causa eficiente e os elementos como causas materiais, se não pensarmos nas Idéias - e a Idéia do Bem acima de tudo. A busca das Idéias - que são a verdadeira causa - é exatamente a "segunda navegação". A "primeira navegação" usa os sentidos e as sensações, já a "segunda" usa os raciocínios e os postulados racionais. Vejamos mais um trecho precioso do Fédon:

Em que consiste a 'verdade das coisas'?

- Quero explicar-te mais claramente o que estou dizendo, porque creio que ainda não me entendes.

- Não, por Zeus! - respondeu Cebes. - Não estou entendendo bem!

- Contudo - continuou Sócrates -, não estou enunciando nenhuma novidade, mas apenas repito aquelas coisas que sempre, em outras ocasiões e até no raciocínio anterior, tenho continuado a repetir. Tentarei mostrar-te qual espécie de causa elaborei e, por isso, volto novamente àquilo de que muitas vezes se falou, e por essas coisas começo, partindo do postulado de que existe um belo em si e por si, um bom em si e por si, um grande em si e por si, e assim por diante (...). Parece-me que, se há alguma outra coisa (ordem empírica) que seja bela além do belo em si (ordem metaempírica), por nenhuma outra razão é bela, a não ser por participar desse belo em si. E digo o mesmo de todas as outras coisas. Concordas comigo acerca dessa causa?

- Concordo - respondeu.

- Então não compreendo mais nem posso admitir as outras causas, as dos sábios. E se alguém me diz que uma coisa é bela por sua cor viva ou pela forma física ou por outras razões desse tipo, logo trato de me livrar de todas essas coisas, porque, em todas elas, eu me confundo, e só disso estou convencido, simplesmente, grosseiramente, talvez ingenuamente: que nenhuma outra razão faz aquela coisa ser bela, a não ser a presença ou a participação daquele belo em si, seja qual for a forma dessa relação. Não desejo insistir agora nessa relação; mas insisto simplesmente em afirmar que todas as coisas belas são belas em virtude do belo. Esta me parece a resposta mais segura a dar a mim e aos outros; e, atendo-me a ela, julgo que não errarei nunca, e que seja seguro, para mim e para qualquer outro, responder que as coisas belas são belas em virtude do belo. Acaso não é esta tua opinião?

- Sim.

- E não achas também que todas as coisas grandes são grandes e que as maiores são maiores em virtude da grandeza, e que as menores são menores em virtude da pequenez?

- Sim.

- Por isso, se alguém afirmasse que um é maior que outro pela cabeça e que o menor é menor pelo mesmo motivo, não o admitirias, mas continuarias firmemente a dizer que não admites que uma coisa seja maior que outra por nenhuma outra razão a não ser pela grandeza, (...) e que o menor por nenhuma outra causa é menor a não ser pela pequenez e que justamente por essa causa é menor, ou seja, pela pequenez. E dirias isso, temendo que, se dissesses que alguém é maior ou menor pela cabeça, não te objetassem, em primeiro lugar, que é impossível que, em virtude da mesma coisa, o maior seja maior e o menor seja menor, e, depois, que também é impossível que pela cabeça, que é pequena, o maior seja maior, já que seria realmente prodigioso que uma coisa fosse grande em virtude de uma coisa pequena. Ou não temerias essas objeções?

- Sim - disse Cebes, rindo.

- E não temerias igualmente dizer - acrescentou Sócrates - que dez é maior que oito porque o ultrapassa de dois e que por esse motivo supera o oito, e não por causa da quantidade? E que um objeto do tamanho de dois côvados é maior do que outro de um côvado pela metade, e não pela grandeza? Trata-se sempre do mesmo temor de antes.

- Certamente - respondeu.

- Então, não te envergonharias de dizer que, acrescentando um ao outro ou dividindo o um, a soma ou a divisão sejam a causa que faz o um tornar-se dois? Não gritarias bem alto que não sabes como outra coisa pode ser formada, a não ser participando da essência peculiar de cada realidade de que ela participa, e que, no caso em questão, não tens outra causa para explicar o nascimento do dois a não ser esta, ou seja, a participação da dualidade, e, além disso, que devem participar dessa dualidade as coisas que desejam se tornar duas, assim como devem participar da unidade as coisas que devem ser um? E não tratarias de te livrar logo dessas divisões, dessas somas e de todas as outras artimanhas encontradas, deixando que as empreguem em suas respostas aqueles que são mais sábios que tu? Tu, ao contrário, como se diz, temendo tua sombra e tua inexperiência, responderias do modo como se disse, apoiando-te na solidez desse postulado.


Então, eis a descoberta da "segunda navegação": a existência de dois planos do ser, ou seja, a descoberta de que, além do plano do ser fenomênico (sensível e físico), existe também o plano do ser metafenomênico (meta-sensível, metafísico), que só pode ser captado com os logoi e, portanto, puramente inteligível.

1 comentários:

o me fez lembrar o meu 1º período da faculdade, quando fazia filosofia da ciência... O homem busca cientifizar todos os fenomenos esquecendo de olhar que ele tem dentro de si as respostas para as coisas, Platão explica um pouco na obra "O mito da caverna", tratando os seres humanos dentro de uma caverna onde só enxergavam sombras e eles faziam a imagem que viam suas visões, cabe a nós enxergarmos além do que vimos com os olhos, entender a nós mesmos. para depois tentar entender o mundo em que vivemos e o transformamos, para fazer da sociedade uma espécie harmonica da convivência humana por um mundo melhor...
Um grande abraço Fabinho...
Gostei muito dos textos...
By: Léo...

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